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Mariana Pezzo - Publicado em 08-04-2021 19:30
Em diálogo com estudantes, prêmios Nobel falam de dúvida e confiança
Estudantes durante a conversa com May-Britt Moser (Reprodução)
Estudantes durante a conversa com May-Britt Moser (Reprodução)
"Estamos vivendo tempos muito desafiadores por causa da pandemia, mas não só. Temos as mudanças climáticas, aquecimento global, a necessidade de alimentar uma população em crescimento, dentre outras questões, e a solução para todos esses problemas só pode vir da Ciência. [...] Precisamos da Ciência também para reconhecer quais são os problemas da Ciência. Uma das grandes questões do nosso tempo é que há muitas pessoas negacionistas, ou que não aceitam, não reconhecem a realidade, não são capazes de analisar uma situação de forma racional, e assim precisamos da Ciência inclusive para nos lembrar que é impossível reagir diante de todos esses problemas sem ser racional", afirma Serge Haroche, laureado com o prêmio Nobel de Física em 2012 por seu trabalho com sistemas quânticos.

"Eu acho que nos sentimos como uma grande família, espalhada pelo globo. Temos tanto em comum! Temos a curiosidade, perseguimos as grandes questões, buscamos as respostas, e também a forma como lidamos com as nossas questões. Elas obviamente são diferentes, mas mesmo assim, há tanto em comum na paixão, no entusiasmo, talvez até nas personalidades que seguem nessa busca", reflete May-Britt Moser, que recebeu o Nobel de Medicina em 2014 por sua atuação em Neurociências.

As frases, destacadas de mais de quatro horas de conversa, dão o tom dos diferentes temas abordados ao longo do Diálogo Nobel Brasil 2021 - O Valor da Ciência, realizado na manhã desta quinta-feira (8/4), com a participação de Moser, Haroche e 40 estudantes de graduação e pós-graduação de todo o Brasil, incluindo Bianca Taeko Matsuo, graduada e mestre em Química pela UFSCar, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Química da Universidade. O evento foi uma realização da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Nobel Prize Outreach (braço de Comunicação da Fundação Nobel), com apoio, no Brasil, do Instituto Serrapilheira e da Secretaria de Educação Superior (SESu) do Ministério da Educação.

Boa parte da conversa falou justamente da importância da Ciência e do pensamento científico e, sob inspiração do título escolhido, de seu impacto na sociedade, junto às dificuldades enfrentadas na atualidade, muito especialmente no Brasil. No bloco inicial, Luiz Davidovich, Presidente da ABC, e Helena Nader, Copresidente da Rede Interamericana de Academias de Ciências, estiveram presentes e delinearam o cenário nacional. Antes, na abertura, Hugo Aguilaniu, Diretor Científico do Serrapilheira, já havia recuperado os cortes no financiamento e o contexto marcado pela desinformação para afirmar ser muito simbólica a realização do Diálogo Nobel "neste momento, neste país".

Davidovich e Nader destacaram especialmente como é demorado o processo de construção e consolidação de uma infraestrutura e de uma comunidade científica, bem como de sistemas educacionais, mas, por outro lado, a destruição é muito rápida. Por isso, reiteraram a necessidade de que o investimento em C&T e em Educação sejam políticas de Estado, e não de governos.

Educação
O investimento em Educação e nas novas gerações foi, sem dúvida, uma das tônicas do evento. Serge Haroche chegou repetidas vezes à Educação como único caminho para reverter um cenário fundado, na sua avaliação, em processos de exclusão derivados da globalização.

O físico compartilhou sua visão de que a globalização gerou em muitas pessoas o sentimento de "abandono à beira da estrada", de desprivilégio e retirada de direitos, levando à busca de vínculos com a comunidade e, considerando a Internet, à formação das bolhas. "A Ciência não consegue criar este vínculo entre pessoas de uma determinada comunidade, já que, por definição, é universal. As verdades da Ciência, seus valores, não podem ser esta cola que ofereça alguma forma de proteção dentro dessas comunidades", afirmou. "Então, a pessoa decide que tudo tem o mesmo valor, que uma opinião tem tanto valor quanto a teoria, e está perdida para a Ciência", concluiu, ao dizer que, neste modo de pensar, as pessoas não acreditam mais nos fatos.

"A Ciência precisa duvidar. Precisamos nos questionar, questionar a validade de nossos modelos e teorias, mas é uma dúvida racional, guiada pela observação. E a dúvida das teorias da conspiração é um tipo perverso de dúvida, não baseada na observação, que permite dizer que qualquer coisa é válida", pontuou Haroche. "A situação é muito ruim e não sei o que temos de fazer, mas uma resposta geral é a Educação. Precisamos começar com as crianças pequenas, explicar o que é o conhecimento racional. É o ponto de partida", registrou.

Complementado Haroche, Moser, que é psicóloga, falou de emoções negativas que proliferam neste cenário, sobretudo o medo. Tais emoções geram, segundo a pesquisadora, justamente a necessidade do sentimento de pertencimento, para o qual o melhor caminho seria a existência de inimigos, de pessoas que pensam diferente daquilo em que só o grupo, a comunidade à qual a pessoa quer pertencer acredita. Como antídoto, portanto, ela propõe a transformação no sentido das emoções positivas.

Lembrando de sua infância e da felicidade que sentia ao ir à praia com a escola, Moser afirmou que todas as crianças nascem com curiosidade, mas, assim como os animais, param de explorar ao sentirem medo. "Temos de assegurar às crianças, e às pessoas ao nosso redor, que não há problemas em seguir, mesmo quando não temos todos os fatos. Já sabemos tanto! Não há problema em não sabermos tudo, de onde viemos, o fim do Universo, nós podemos descobrir, temos permissão para perguntar", defendeu.

Otimismo
Também na conversa com os estudantes, respondendo a questões recorrentes sobre como lidar com situações adversas e as frustrações e dificuldades resultantes - abarcando desde a falta de apoio à C&T no Brasil, pressões produtivistas e seu impacto na saúde mental, até desigualdades de gênero na Ciência e negacionismo -, Moser reiteradamente adotou postura de defesa do poder da autoconfiança, da crença na possibilidade de transformação, bem como da necessidade de algum otimismo.

Este foi o tom inclusive de sua resposta à estudante da UFSCar. Em sua participação, Bianca Matsuo perguntou como engajar cientistas de instituições e países que são referências em suas áreas em colaborações com países em desenvolvimento. "Vou devolver a responsabilidade a você. Você tem de ter orgulho de você mesma, da Ciência que está produzindo, e se exibir. Se acredita em você, nas suas perguntas, você pode construir algo único. Eu acredito em você", respondeu May-Britt Moser.

Outro tema recorrente na conversa foi o papel e a importância da diversidade e, mais especificamente, também da interdisciplinaridade na Ciência. May-Britt Moser registrou como, desde o início da implantação do seu laboratório, a diversidade sempre foi uma prioridade, pelo entendimento de que o contato entre ideias diferentes é o principal combustível para a criatividade. Haroche registrou como a colaboração é essencial à Ciência Moderna desde o início do seu desenvolvimento, ainda no século XVII. "O que é maravilhoso sobre a Ciência é que é universal, não tem fronteiras, mas a praticamos com mais eficiência se podemos compartilhar experiências, visões de mundo de pessoas com diferentes trajetórias", afirmou o físico, ilustrando a fala com resultados de suas interações com pesquisadores brasileiros.

Outros temas abordados foram a relevância e o lugar das Ciências Humanas, o afastamento da Natureza, as relações entre a Ciência fundamental e aplicações e lições da pandemia. A gravação do Diálogo, em versões em Inglês e com tradução simultânea para o Português, está no YouTube, em links que podem ser acessados através do site da ABC.